Vista seu manifesto

Por Rebeca Duque Estrada*

Olabi Makerspace
7 min readAug 3, 2017

O conceito de “Wearable Computers”, ou computadores vestíveis em português, é mais antigo do que imaginamos. A ideia de aliar uma função específica e computar informação em um objeto vestível surgiu lá atrás, por volta do século 17 na China, com a criação de um anel ábaco, que permitia fazer cálculos matemáticos enquanto vestia-se o anel[neste link um pouco mais sobre essa história].

De relógios calculadora de pulso a sapatos que ajudavam a trapacear na roleta, muitas invenções que incorporaram tecnologias a objetos vestíveis foram surgindo ao longo dos anos e ajudaram a definir e estabelecer esse conceito. Mas os termos “computador” e “vestível” não se aplicam perfeitamente a todos eles e, por isso, muitos consideram que o primeiro wearable computer foi criado no início dos anos 80 pelo professor da Universidade de Toronto, Steve Mann, quando ele desenvolveu um computador multimídia montado em uma mochila.

Com a produção em massa de microchips dos anos 80, foi possível desenvolver computadores cada vez menores e mais leves, e foi a partir dessa década que começaram a aparecer mais projetos e pesquisas em torno dessa tecnologia.

Anel Ábaco (China séc. 17), Steve Mann (1981) e Private Eye (1993)

Se você está se perguntando porque nunca ouviu falar desses exemplos ou até mesmo do termo “wearable technology” até hoje, uma das respostas está no fato de que a produção desse conhecimento esteve sempre dentro dos muros das universidades. Sendo desenvolvidos pelos laboratórios de pesquisa e nos poucos casos em que eles saíram de lá, foram direto para a indústria, sem chegar ao conhecimento da população geral.

Mas se você já se sente familiarizado com esses termos e “novas” tecnologias, isso se deve muito ao boom do movimento maker e do movimento open source que criaram novos formatos e estruturas de geração e distribuição de conhecimento. Ambos movimentos defendem que isso aconteça num sentido mais de baixo pra cima e enquanto o primeiro incentiva o fazer como processo de aprendizagem e que qualquer pessoa pode ser um “fazedor”, o último promove um modelo colaborativo de produção intelectual e traz um novo paradigma para o direito autoral.

Ao chegar a Berlim para finalizar meu mestrado, fui sondando o cenário local de desenvolvimento de wearables dentro das esferas fashion tech, como é chamada a fusão entre moda e tecnologia, e dentro dos makerspaces, como são chamados os espaços de fazer que abrem acesso às tecnologias e ferramentas da inovação. Com o tempo pude perceber as diferentes abordagens e focos de cada uma.

Dentro do contexto universitário, dos projetos alunos de moda que vi e de palestras que presenciei, me deparei com muito interesse pelos chamados materiais inteligentes, que possuem propriedades que reagem às mudanças no ambiente, permitindo assim, diferentes propostas de interação. Já no contexto dos makerspaces, das propostas de workshops e cursos de wearables oferecidos, o foco estava mais no aspecto estético do objeto, utilizando na maioria das vezes luzes de LED como resultado final da interação e, em alguns casos, combinando à ela, objetos produzidos na impressora 3D.

Sensor de flexão e Nitinol (composto metálico que possui memória formal)

Enquanto o primeiro contexto me instigou a pesquisar mais sobre os materiais inteligentes (e a me apaixonar por muitos deles), o segundo me gerou certa inquietação e desconforto. Porque se manter apenas nesta esfera estética da luz? Por que não ir além disso? E se faz sentido ir além, como fazer?

Há dois anos morando fora do Brasil, acompanhava tudo o que acontecia na esfera política brasileira de maneira apreensiva e me sentia muitas vezes incapaz de demonstrar maior suporte além das redes sociais. Ao receber o convite para o evento de premiação da Fashion Fusion Award, uma competição de wearables organizada pela Telekom, resolvi que essa seria a oportunidade de explorar as perguntas que permeavam minha cabeça através de um vestível interativo. Para esse primeiro protótipo, decidi usar a hashtag #ForaTemer que transbordava nas redes sociais brasileiras e representava, em poucas palavras, muito do que eu queria transmitir como mensagem.

Pesquisando sobre materiais inteligentes, conheci os produtos eletroluminescentes, em que camadas de cobre e fósforo reagem à corrente elétrica gerando uma luz azulada contínua. Para esse projeto então, usei o EL Panel que é como uma folha luminescente que piscava de acordo com a música. Para escrever, coloquei sobre ele um vinil adesivo escrito Fora Temer que funcionou como um estêncil por onde saía a luz. Costurei então o EL Patch em baixo do vestido e fui para o evento com ele. Depois de vivenciar uma sensação completamente nova de estar vestindo uma roupa que dizia algo, percebi que essa ideia poderia ir bem além desse vestido.

Sistema utilizado no vestido com EL Panel e ativador sonoro

A partir desse teste, entendi que era possível transformar essa intervenção em algo maior, estimulando que mais pessoas pudessem ter a mesma experiência que eu tive. Logo após esse evento, recebemos no Olabi um convite para liderar um workshop dentro da programação do makerspace no Re:publica, um dos maiores eventos da sociedade digital global, que acontece há onze anos em Berlim.

Resolvemos então que essa seria uma boa oportunidade para transformar essa minha experiência em um projeto: o Wearable as Manifest. Explorando o uso da luz para além do brilho, pensando o objeto wearable como um meio de comunicação e, dessa forma, permitindo ao usuário vestir sua própria mensagem.

Participantes do Workshop Wearable as Manifest no re:pública 2017 em Berlim

Por ser um workshop de curta duração, tivemos que desenvolver um sistema mais otimizado, em que o escrever e reescrever fosse mais fácil e rápido. Depois de muitos testes, chegamos a uma solução que continuava a utilizar a tecnologia eletroluminescente, mas ao invés do painel, escolhemos o fio eletroluminescente, mais conhecido como EL Wire, que funcionaria como uma linha contínua de um lápis, escrevendo letra a letra seguindo uma caligrafia manual.

Workshop Wearable as Manifest no re:pública 2017 em Berlim

Ao recebermos o convite para trazer um workshop ao MECA Inhotim, plataforma cultural que organiza um festival cultural, decidimos que fazia muito sentido trazer o Wearable as Manifest, por entendermos que o público do festival era jovem, questionador, engajado com diferentes causas e a bolsa manifesto poderia se tornar uma ferramenta de expressão durante o festival e fora dele também. No total foram três workshops de uma hora, em que os participantes tiveram contato com o sistema que criamos e puderam montar suas bolsas, escrevendo com luz as mensagens que os representavam.

Workshop Wearable as Manifest no MECA Inhotim 2017

O sistema consistia em uma bolsa de lona com frente e verso de tela, 3 metros de EL Wire, um inversor de corrente contínua (DC) para alternada (AC), pilhas AA e mini clips para a fixação. Antes de colocar a mão na massa, trabalhamos com os participantes a mensagem que eles gostariam de escrever. Logo após, testamos numa folha de papel, a tipografia que seria utilizada. Com a palavra escolhida, começamos a fixar o EL Wire na tela e fomos ajustando os pontos de fixação para deixar a mensagem o mais legível possível.

Sistema do primeiro protótipo da bolsa manifesto
Participante montando sua bolsa manifesto

Após os três workshops, foi muito bacana ver os participantes caminhando pelo festival com suas bolsas manifesto, dizendo muito por meio da luz, se empoderando de uma tecnologia nova e descobrindo novas formas de se expressar através de um objeto vestível.

“Participar do workshop foi interessante por conta da ressignificação que a tecnologia proporciona a moda. A mensagem deixa de ser subjetiva, que muitas vezes fica exposta apenas em um texto sobre o conceito do produto, e passa a estar explícita através das palavras que são formadas pela luz.”

Gabi Monteiro, designer de moda e participante do workshop.

Participantes com suas bolsas manifesto no festival MECA Inhotim

Sabemos que no espaço da internet pode-se dizer muito sem relacionar a fala ao locutor. O que mudaria então, ao se incorporar o que se fala a uma peça de roupa ou acessório? Você se censuraria ao saber que o que você diz e defende está te acompanhando fisicamente e sendo exposto a todos ao seu redor?

Esse é um aspecto importante que exploramos neste projeto, buscando entender o potencial de impacto dessa abordagem e como ela ajuda na ressignificação tanto do objeto vestível, como meio de expressão, quanto do próprio ato da fala como manifesto. Um exemplo que segue questionamentos parecidos é o “Printing Dress” lançado em 2011 pela Microsoft Research.

Nós no Olabi, escolhemos explorar as potencialidades trazidas pela democratização das tecnologias, de forma que cada vez mais pessoas comuns tenham acesso a conhecimentos, materiais, ferramentas presentes no mundo de hoje. A tecnologia vestível é uma das abordagens que utilizamos, pois acreditamos que tendo como base peças de roupa e acessórios, ela se torna mais convidativa e amigável para aqueles que nunca tiveram contato com esses temas mais técnicos e complexos.

O projeto Wearable as Manifest segue em constante desenvolvimento e numa busca de como usar técnicas e tecnologias como ferramentas para que as pessoas tenham mais espaços e formas de se expressar. Num mundo repleto de opressões, nos resta usar nossa criatividade e o que temos à mão para fazer ecoar nossos gritos.

#FORATEMER

* Rebeca Duque Estrada é coordenadora de projetos do Olabi, arquiteta e pesquisadora de novas tecnologias. Desenvolve cursos e projetos relacionados com tecnologia wearable e é colaboradora dos grupos Open Design Team e Global Innovation Gathering.

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